‘O menino do pijama listrado’ é uma obra literária de John Boyne publicada em 2009 que, posteriormente, foi transformada em filme por Mark Herman. O filme e o livro apresentam várias diferenças, as quais não vamos comentar por serem pouco importantes para a evolução desse artigo. Assim, ao invés disso, vamos nos concentrar nos principais valores e reflexões que a obra transmite, pelos quais tanto o filme como o livro valerão sem distinção como referência.
‘O menino do pijama listrado’ é narrado em um dos momentos mais cruéis e vergonhosos da humanidade, o Holocausto, que aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial. Este episódio criticado e repudiado não deve ser esquecido porque, como dizem, a história serve para aprender e não voltar a repetir os mesmos erros.
Estamos na Alemanha nazista, na casa de uma família militar, com valores e uma ideologia já bastante instituídos, ou isso é o que parece, entre seus membros. O cabeça da família é um oficial militar de alto escalão a serviço de Hitler que, devido a seu “grande trabalho”, será transferido para Auschwitz para continuar o seu trabalho ali. Toda a família se muda para o que será o seu novo lar, uma casa completamente isolada, mas muito próxima do campo de concentração. Ali conheceremos melhor os personagens:
As crianças: O protagonista é Bruno, o filho menor do comandante; como todas as crianças da sua idade, ele desconhece o mundo e só pensa em brincar. Ele gosta de livros de aventuras e quer ser um explorador. Também há Gretel, sua irmã mais velha que, no começo, é vista rodeada de bonecas, mas logo mudará as bonecas que decoram o seu quarto pela propaganda nazista. Além disso, vemos Shmuel, um menino da mesma idade de Bruno que, por ser judeu, vive no campo de concentração.
Os pais: O pai de Bruno é um oficial de alto escalão muito severo que passa pouco tempo em casa. Sua esposa no começo desconhece grande parte do “trabalho” que desempenha o marido; no entanto, podemos ver como essa situação de ignorância se transforma, de modo que, ao sair dela, também mudarão os sentimentos com relação ao marido, sentindo repulsa pelo papel que ele desempenha em seu trabalho.
Os avós: São os pais do comandante. O avô se mostra orgulhoso de seu filho, no entanto, a avó é bastante contrária ao nazismo e sente aversão pelo que o filho faz.
No livro O menino do pijama listrado vemos que Shmuel e Bruno nasceram exatamente no mesmo dia, porém suas vidas são completamente diferentes. Bruno vive em uma família com uma vida confortável, é filho de um militar e sua maior preocupação é que não ter com quem brincar. Sofre por causa do tédio e porque está descontente com o novo lugar onde está vivendo. Não entende porque ele é obrigado a se mudar e deixar os seus velhos amigos.
Shmuel é judeu, e por isso foi condenado a viver em um campo de concentração. Consequentemente, suas preocupações são bem diferentes daquelas de Bruno, apesar de que nele também existem os mesmos desejos e a inocência infantil.
Esta contraposição de realidades nos mostra como a nossa procedência pode nos marcar durante a vida e também nos condenar; ninguém escolhe onde quer nascer, ninguém tem a culpa de pertencer a um ou outro berço. As crianças não entendem essas diferenças e veem na outra pessoa um igual, um amigo com quem brincar e compartilhar aventuras. Não podem entender porque uma barreira os separa se eles nasceram no mesmo dia, se no fundo são tão parecidos.
A barreira neste caso é real, mas também podemos vê-la como um símbolo. Duas crianças nascidas no mesmo dia, dois meninos iguais e duas realidades muito diferentes. Atualmente olhamos os nazistas com desprezo, mas no momento que Bruno nasceu ele teve sorte, ou, ao menos, mais sorte que Shmuel. Poderíamos dizer que essa barreira, essa contraposição de realidades ainda existe atualmente; apesar de acontecer de maneira diferente, ainda não é a mesma coisa nascer em um lugar do mundo ou em outro, em uma família abastada ou em uma família carente de recursos.
As ideias do filósofo Friedrich Nietzsche foram adotadas e reinventadas pelo Nazismo. Este filósofo acreditava em uma espécie de homem com características superiores: fortes, inteligentes, criativos, capazes de pensar e raciocinar. Esses homens eram os sobreviventes, aqueles que se destacavam do rebanho. Os nazistas se identificavam com esse super-homem.
Por outro lado, para Nietzsche havia diferentes fases para alcançar esse status de Super-homem:
Camelo: representa a obediência, as cargas e responsabilidades que temos que suportar.
Leão: o camelo, quando já não quer mais ser camelo, se transforma em leão. Isto representa a liberação das cargas, a rebelião e rejeição dos valores tradicionais.
Criança: representa a última fase da metamorfose. A criança vive longe dos preconceitos e valores estabelecidos, ela está encarregada de criar seus próprios valores. Como se fosse uma brincadeira, a criança os constrói a partir do nada.
Eu gostaria de identificar essa imagem da criança com os personagens de Shmuel e Bruno; ambos se mostram livres de preconceitos, ou quase livres, eles são os únicos que superam essa barreira na qual os adultos tropeçam. Ao pular a cerca, desafiam os valores estabelecidos, não importa o que lhes foi ensinado, sua amizade vai além. Bruno se veste com um pijama listrado, se igualando a Shmuel. Para as crianças, a amizade é tudo e já não existem diferenças.
Ou seja, eles mesmos vão emitindo opiniões sobre o outro conforme vão se conhecendo, eles mesmos criam seus próprios valores.
“Supõem-se que não devemos ser amigos; nós temos que ser inimigos, você sabia?”
-Bruno, ‘O menino do pijama listrado’-
O menino do pijama listrado expõe os problemas nos quais pode acarretar uma determinada ideologia e as ideias que lhe dão origem. Na história e no próprio filme, vemos que as ideias podem chegar a causar de maneira indireta muito mais estrago que qualquer arma, especialmente se considerarmos o poder de algumas delas, em determinados momentos, para agrupar vontades. Assim, a convicção das pessoas por uma determinada causa pode levá-las a cometer qualquer tipo de ato, por mais injusto ou cruel que ele possa parecer.
Para que uma ideia continue no tempo é importante inspirá-la nos mais jovens, isso é o que vemos nas aulas de Gretel e Bruno, e como o seu professor lhes ensina História seguindo os roteiros da própria ideologia nazista. Deste modo, ele assegura transmitir às crianças os valores que considera corretos e, também, que a ideia de que eles pertencem a uma raça superior ou privilegiada prossiga nas gerações posteriores.
As alusões à propaganda nazista também são interessantes: elas são vistas nos cartazes com os quais Gretel decora o seu quarto ou na forma de “vender” a qualidade de vida nos campos de concentração.
O desenlace é antecipado pelos fenômenos atmosféricos, graças a um tópico literário que se conhece como locus terribilis; a imagem da chuva avisa que algo vai acontecer. Este desenlace nos propõe uma reflexão: não somos conscientes do sofrimento do outro até sofrermos. Ao inverter os papéis, ao sentir na nossa própria pele a dor alheia, nos tornamos partícipes e somos conscientes disso.
Tudo isso, no ambiente de uma história de horror e crueldade humana, nos leva a questionar se, de alguma maneira e no conforto do nosso lar, tampouco mudamos tanto e continuamos alheios ao sofrimento das outras pessoas.
“Tudo isso, é claro, passou faz muito, muito tempo, e nunca poderá voltar a acontecer nada parecido. Hoje em dia, não.”
-John Boyne, ‘O menino do pijama listrado’-
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