Humildade
“Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.
Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.
Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura
numa terra sedenta
e num telhado velho.
Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.”
Cora Coralina
Quando li este poema de Cora Coralina, uma poeta do interior do estado de Goiás, como Drumond e Adélia Prado em Minas, fiquei encantada com a “pobreza”. Adélia mora em uma casinha de pedra, um carrinho simples na garagem, árvores no quintal, com uma mesa de madeira mineira na sua sala de jantar, e escreve a luz de velas… a vejo na feira, na igreja, conversando com os vizinhos… tudo muito pobre… estar com ela e ouvi-la falar, pois, tenho esta graça, sou praticamente sua vizinha, é embeber-se de sabedoria. Parece que a sabedoria anda de mãos dadas com a pobreza.
Estes versos falam de nossa condição existencial: a pobreza. Só a sabedoria com nossa existência trágica, nos fará descobrir esta nossa condição. E demora… até chegarmos lá, onde Adélia e Coralina chegaram, haja peleja, aceitação, tolerância, amor… Do contrário ufanamos fortes, poderosos, damos conta de tudo, e nosso corpo vivido acaba por carregar um peso morto, das nossas ilusões…
Neste poema, a Aninha, como era chamada, faz uma prece. Pede. Pede que aceite sua condição de pobreza, pois é assim que se é. Aceitar o que se é. Assumir a responsabilidade do que se é. Ser livre para ser o que é, e, para vir-a-ser, sem lamentações. Heidegger não fala de pobreza. A pobreza é melhor entendida pela boca dos poetas. Eles sabem falar de coisas sagradas, mesmo que seja para revelar-nos: homens desamparados, lançados ao devir, ser-para-a-morte. Heidegger e Coralina se aproximam.
Eles entenderam o existir. Nossa existência é trágica, há morte, dor e sofrimento. O Dasein se angustia diante de tanta pobreza. Vive uma vida inautêntica, provisória, agitada, vazia. Os apelos do ontológico, que mostram nossa pobreza, falam da nossa condição. O homem tem uma relação peculiar com o Ser. Não é como os demais entes. Ele encontra sentido nas coisas. Sofre os condicionamentos de sua existência, mas é mais que seus próprios condicionamentos, pois é abertura às possibilidades…
O Dasein pode se fortificar. Ele pode aceitar a inexorabilidade da existência: somos seres-para-a-morte, há em nós uma pobreza ontológica, originária. Superar a angústia de morte e assumir a finitude da vida. Esta é a liberdade do homem: “agradecer a vós, minha cama estreita, minhas coisinhas pobres…”
Frankl fala de valores vivenciais. Encontramos o sentido da vida por meio de valores de vivência. Apreciar o seu próprio existir e felicitar. Degustar e saborear a vida, os momentos que acontecem. Estamos na lua quarto crescente…o sabiá laranjeira na minha janela, o pé de feijão que nasceu sem pedir na trinca da soleira, a maria-sem-vergonha no caminho para o trabalho…contemplar o belo, valorizar a estética da vida, surpreendermos, encantarmos com a existência: “acender eu mesma o fogo alegre da minha casa, na manhã de um novo dia que começa”.
Não há neutralidade. Sou-ser-no-mundo. Minhas vivências são lotadas de sentido e a partir delas que faço ciência. A começar em mim. No mundo, na vida, mundo-da-vida. O que tenho é minha subjetividade, minha história real, minha existência, e ela não pode ser negada, pois corre o risco de ser instrumentalizada, reificada. A existência contrapõe a essência. A existência é dinâmica, mutável, a essência é estática. Sou, logo penso. Primeiro existo, sou existente, e assim posso pensar e buscar minha essência.